Vir a ser dependente
Muitas vezes perguntamo-nos por que motivo algumas pessoas bebem e não têm problemas e outras se tornam dependentes. De facto, há pessoas que sabem quando começam e quando devem parar de beber e outras não que conseguem saber parar. Aquelas que sabem parar de beber são aquelas que percecionam que a bebida já não lhe está a “cair bem”, têm até alguns sinais de mal-estar. Pelo contrário, as pessoas que têm problemas de uso, com ora se diz, não têm essa perceção. Sentem-se até muito bem e continuam a consumir. Estas últimas comportam-se como se não tivessem consciência de que beberam de mais e que, por isso, não têm, condições para conduzir, por exemplo, colocando, assim, em risco a sua vida e a dos outros. Essas pessoas têm uma sensibilidade diferente às substâncias que resultam da degradação do álcool no fígado, nomeadamente a uma que se denomina de acetaldeído.
A complexidade dos comportamentos
Esta questão remete-nos, assim, para a problemática da responsabilidade de comportamentos, tomando como “certo” que, face a um defeito enzimático, a culpa não é do sujeito. Apesar da aparente simplicidade desta afirmação, as cascatas que determinam um determinado comportamento não são assim tão fáceis de entender. Tomemos em atenção que a construção de rotinas e sub-rotinas neurobiológicas, que vão dar origem ao modo como reagimos a acontecimentos, levam anos a constituir-se (mais de dois anos) e não dependem apenas da estrutura genética (genótipo). O ambiente, assim como as aprendizagens repetidas e sistemáticas vão arquitetar os modos fundamentais e habituais de agir, reagir, interagir com pessoas ou coisas. A organização desses encadeamentos, automáticos, as tais rotinas e sub-rotinas expressam-se (fenótipo) no nosso dia a dia, no nosso modo de ser e de estar no mundo, de uma forma continuada e persistente, de tal modo que ouvimos dizer frequentemente que “fulano é assim”, desta ou daquela maneira, sempre que algo acontece, ele reage de uma forma bastante previsível e esperada.
As aprendizagens que vamos fazendo no meio onde somos criados têm um peso determinante no nosso modo de ser e estar no mundo. Se as variáveis mais instrumentais (saber fazer e saber coisas) são indiscutivelmente importantes ferramentas para saber estar no mundo, o mais relevante é o “cimento” que liga todos esses elementos: o afeto. A quantidade e qualidade desse amor vai determinar a solidez da estrutura psicológica de cada um. É nesta área que vamos encontrar falhas na construção identitária dos sujeitos que vão adoecer em problemáticas de dependência de substâncias (álcool ou drogas) ou sem substâncias (compras ou jogos).
A construção da identidade
Através dos órgãos dos sentidos, percecionamos tudo o que nos rodeia, cores, sons, cheiros, paladares, sensações tácteis, afeição, doçuras, amarguras, etc. Apreendemos, incorporamos e tornamo-los nossos. Os referentes, pais ou cuidadores, são figuras de topo para esse trabalho, diário, repetido, continuado, que nos ajudam a determinar quem somos, o que querem de nós e para onde vamos. Será então na primeira infância que, com a nossa genética, herdada dos nossos progenitores e aprendida particularmente com eles, se constrói a obra em que cada um se torna. Tenhamos presente que uma coisa são as atitudes e comportamentos dos referentes que podem, no entender do adulto, ser o melhor e outra coisa bem diversa é a forma como isso é percecionado, entendido e interiorizado.
Seria redutor pensar que a nossa identidade se confina às referências parentais. Há uma multiplicidade de pessoas e de acontecimentos que contribuem para dar forma à identidade de cada ser, partindo do próprio, que sente e vê as coisas ao seu modo, assumindo uma visão pessoal e individual. O agir de cada um reflete, não apenas, as suas problemáticas, mas também aquelas que são de ordem cultural, social, familiar, política, religiosa, etc., como se em cada coisa que realizamos mostrássemos a nossa marca pessoal.