Ir ao psiquiatra o ferrete e o estigma
A consulta de psiquiatria
Saber-se que alguém se atreve a dizer que foi ou frequenta uma consulta de psiquiatria continua a constituir um risco de ser apelidado, mesmo que à boca pequena, de “maluco”. Cada um sente nas costas e na alma uma dor que vem acrescentar mal-estar ao seu padecer.
Não é a mesma coisa afirmar publicamente que se foi ao neurologista, ao internista, ao endocrinologista ou ao psicólogo. A conotação de uma consulta destas não representa qualquer ameaça nem juízo pejorativo. Por que motivo será? Há doenças mais simpáticas do que outras?
A saúde mental e as outras doenças
Cada um parece aceitar melhor a realidade que lhe é percetível e compreensível, uma perturbação da marcha, uma paralisia do hemicorpo, ou mesmo uma doença que, apesar de não se ver, socialmente é muito bem aceite, como a diabetes, a hipertensão ou uma dislipidemia. Nesta perspetiva, é aceite que os doentes tomem carradas de medicamentos e “ouve-se” que são medicamentos para a vida toda, sejam os do colesterol, para as tensões, para a diabetes ou tireoide. Quando a pessoa está a fazer uma medicação psiquiátrica, “chove” a ignorância, aliada à maledicência – “Toma cuidado, vais ficar viciado, esses medicamentos provocam demência, engordam, emagrecem, tiram a líbido, etc.”.
Este tipo de pensamentos são um lugar-comum, mas são ainda mais perigosos, pois quantas vezes inviabilizam o tratamento, incentivando à suspensão do plano terapêutico e atrasam temporalmente a decisão de consultar um médico especialista em saúde mental ou psiquiatra.
Estes tipos de atitudes são muito comuns, não apenas na população geral, mas também são veiculadas por técnicos de saúde. Poderia à partida pensar-se que se trataria de saberes ou falta deles. Não é de acreditar. Há aqui mais variáveis a ter em conta e que se prendem com as próprias dificuldades em conhecer-se, lidar consigo e com a sua história, cheia de muitas histórias e também a pessoa do médico psiquiatra. Por vezes, temos no nosso imaginário uma construção esotérica dessa personagem, a maior parte das vezes, distante da pessoa comum que é o psiquiatra, sendo apenas mais um médico especialista em doenças que não gostamos de ter, o que é semelhante a todas as outras. A este propósito, recordo uma frase de Oscar Wilde: «quanto mais pitoresco é o poeta, mais medíocre é o poema».
O medo das doenças
É normal termos medo das doenças, trazem à tona as nossas fragilidades, questionam a nossa existência, limitam os nossos desempenhos e outras coisas assim.
Excetuando algumas doenças agudas e os acidentes que surgem abruptamente, o adoecer seja do que for, físico ou mental, é sempre lento, como uma gota de água se fosse infiltrando numa parede, gota a gota, dia a dia e, meses ou anos depois, a parede desaba. Por exemplo, uma cirrose hepática, não se instala de um dia para o outro, será uma noxa (agente agressor) que, durante meses e anos, vai agredindo os hepatócitos e estes vão-se ajustando o melhor que podem, até à exaustão e incapacidade adaptativa. Passados meses ou anos, é que começam a surgir sintomas que levam a pessoa a consultar um médico e quando este faz o diagnóstico da doença, então constrói um plano de cuidados, medicamentosos e comportamentais, para suster o avanço da doença ou mesmo a sua regressão. Nas dislipidemias, na hipertensão ou diabetes não basta tomar “religiosamente” e para toda a vida os fármacos prescritos, a pessoa que é a dona de si e da sua saúde, tem de operar mudanças no seu estilo de vida, seja na atividade física, seja nos seus hábitos alimentares.
Também na saúde mental é assim, as pessoas não adoecem porque querem, nem ficam contentes por serem portadores de uma agorafobia, de uma depressão bipolar, de uma esquizofrenia ou de ansiedade generalizada. Nem estas doenças surgiram assim do nada. Manifestam-se habitualmente em períodos de ciclos de vida de maior fragilidade, como a infância, adolescência, início da vida adulta, na involução, saída de casa dos filhos (ninho vazio), viuvez, situações acidentais, como perdas de familiares e de amigos, emprego, separações, conflituosidade, outras doenças.
Por que razão adoecemos?
Perguntamo-nos por que razão é que há pessoas que adoecem e outras não. A resposta é semelhante a todas as doenças – cada pessoa tem uma construção biológica e psíquica que herdou pela genética (genótipo) e pelas suas aprendizagens familiares e ambientais (fenótipo) que se traduzirão na capacidade de resiliência face às adversidades e mudanças. O nosso corpo biológico depende da organização psicológica e não há psicopatologia sem corpo. Quando o nosso corpo biológico manifesta disfunções, estas têm relação com o psíquico. Há uma interdependência. Diz o povo, e com razão, que “o mal e o bem à face vem”. Olhamos para alguém e temos a impressão de que está cheio de saúde ou, pelo contrário, tem aspeto de doente.
Em saúde mental, temos uma atenção muito particular para as vivências e aprendizagens infantis, pois são elas que predominantemente determinam o adoecer. Sim, há fatores desencadeantes e precipitantes, mas é sobre esse constructo primordial que podemos, por um lado, compreender o sofrimento, o adoecer e, por outro, é essa acessibilidade que abre caminho para a conciliação interna, o compadecimento e a aceitação de si como é, com muitas virtudes e também alguns defeitos. Esta ponta do iceberg, doença psiquiátrica e a história individual, parece ser uma variável a ter em conta para entender este medo de ir ao psiquiatra.
O papel do especialista em saúde mental
O especialista em saúde mental funciona muito particularmente no não dito, olha para a pessoa, percebe o sofrimento, sente-o no olhar, no andar, no gesticular. É o todo da pessoa, o seu cheiro, as cores que usa, como se veste, como se senta, o tom de voz, as atitudes de escuta, ainquietação, a súplica e o medo. Lá teremos de falar de nós, dos nossos medos e fraquezas. Depois, percorremos os caminhos que nos conduziram ao nosso ser assim como somos. Construímos o nosso ser psicológico através das perceções elementares como o olhar, o escutar, o tocar, o cheirar e o saborear. Juntamos essas pequenas peças de sensações e fazemos constructos mnésicos primordiais. Sobre eles vamos acrescentando, justapondo e construindo memórias, convicções e narrativas, que são a base do nosso ser e estar no mundo.
Depois da avaliação diagnóstica, fazemos rigorosamente o que os outros especialistas fazem, um plano de cuidados que inclui mudanças de atitudes, comportamentos e medicamentos. Há, porventura, um acento tónico no “trabalho de casa”, que é particularmente valorizado, deslocando os processos de mudança para a centralidade da pessoa doente e as consultas vão fazendo um caminho mais rápido ou mais lento, de acordo com o ritmo de cada um.
Há doenças psiquiátricas gravíssimas (Esquizofrenias, p.e.), só comparáveis com as neoplasias para as quais as soluções cirúrgicas, de quimio ou rádio não melhoram o mau prognóstico e aí restam-nos tratamentos sintomáticos, paliativos ou de redução de danos.
Até quando o estigma?
Este estigma, sinal de ignomínia, feita pelo ferrete (ferro para marcar a fogo), que é sempre pensado e feito por alguém, que é sempre outro, distante, fora, mas que persiste.
Quando conseguimos falar sobre as nossas fragilidades a alguém em quem confiamos, que nos ouve, é sinal de finura intelectual, de uma sensibilidade salutar e invulgar.
Há também o medo dos doentes psiquiátricos, temos a fantasia da sua imprevisibilidade e da agressividade. Não, de facto os doentes psiquiátricos são menos agressivos do que a população geral e são muito previsíveis. Tememos, sim, a sua elevada sensibilidade e intuição. Uma capacidade invulgar de captar sinais e de fazer leituras rápidas do não-verbal, como se muito rapidamente soubessem o que estamos a pensar ou o que vamos fazer.
Sendo assim, os doentes psiquiátricos, especialmente, mas como todos os outros, são muito sensíveis a manifestações de atenção e de afeição.
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