O papel do endocrinologista
Na Cirurgia Bariátrica
Introdução
A equipa multidisciplinar de avaliação para cirurgia bariátrica deve ser integrada por diversos profissionais, entre os quais um endocrinologista. Apesar de muitas vezes ser subvalorizado, o acompanhamento por Endocrinologia é fundamental, tanto no período pré-operatório como no pós-operatório.
Pré-operatório
A observação por Endocrinologia é essencial para um correto estudo da obesidade, das doenças associadas e para aprovação da cirurgia bariátrica.
O endocrinologista é o responsável no pré-operatório pela identificação e orientação de várias comorbilidades associadas à obesidade (patologias que ocorrem em simultâneo), nomeadamente a diabetes mellitus tipo 2, a hipertensão arterial, o aumento do colesterol e dos triglicerídeos, entre outras. Um dos principais objetivos da avaliação inicial por esta especialidade é excluir patologias endócrinas com possibilidade de tratamento, como por exemplo, hipotiroidismo descompensado (diminuição da produção de hormonas tiroideias), síndrome de Cushing (excesso de produção de cortisol) e hipogonadismo (diminuição das hormonas sexuais). Estas doenças podem ser responsáveis por 5 a 10% dos casos de obesidade. O endocrinologista identifica ainda se existem fatores de risco adicionais para deficiências de micronutrientes que podem ser potenciados com o procedimento cirúrgico e atua de modo a minimizar esse risco.
Apesar de a maioria do estudo efetuado ser transversal a todas as pessoas propostas para cirurgia bariátrica, ocasionalmente, o endocrinologista necessita de realizar análises e exames mais específicos. Desta forma, a avaliação mais minuciosa é individualizada e personalizada, consoante a história clínica, as alterações detetadas no exame objetivo e os resultados de exames já realizados. O estudo efetuado permite validar a indicação para cirurgia bariátrica e aconselhar o tipo de cirurgia mais adequado. Além disso, em alguns casos, durante este acompanhamento inicial são identificados problemas ou doenças que requerem observação por outras especialidades, procedendo-se à sua adequada referenciação.
Pessoas com défice intelectual significativo, doenças psiquiátricas não controladas e outras patologias graves ou avançadas apresentam contraindicação absoluta para cirurgia. Existem também algumas contraindicações relativas, como a diabetes e hipertensão descompensadas ou alterações graves da função tiroideia. É o endocrinologista que atua diretamente na melhoria destas doenças antes de considerar a pessoa apta para cirurgia, ajudando a definir o momento mais seguro para o procedimento cirúrgico. A idade já não é um fator muito limitante; atualmente, a cirurgia bariátrica é considerada segura e eficaz em pessoas com idade superior a 65 anos. Contudo, os doentes devem ser cuidadosamente selecionados, a cirurgia apresenta maiores riscos e os resultados são mais modestos quando comparados com populações mais jovens.
A perda de peso antes da cirurgia pode minimizar os riscos do procedimento e potenciar os resultados no pós-operatório. Neste contexto, o endocrinologista pode manter ou prescrever fármacos para a obesidade, funcionando como ponte para a cirurgia.
Pós-operatório
Após a cirurgia, o acompanhamento por Endocrinologia continua a ser extremamente importante. O reforço da educação, motivação e compromisso do paciente é realizado ao longo do seguimento, de modo a promover a mudança de estilo de vida e o sucesso da cirurgia. Um plano nutricional estruturado e um programa de atividade física ajustados às necessidades individuais são componentes imprescindíveis no processo de perda ponderal e na sua manutenção a longo prazo.
A cirurgia bariátrica permite não só uma perda muito significativa do peso, como a redução do uso de medicação diária, o controlo e muitas vezes a remissão de diversas comorbilidades, a diminuição do risco de enfartes, acidentes vasculares cerebrais e cancro, a melhoria da qualidade de vida e a redução da mortalidade.
No pós-operatório, o endocrinologista solicita exames de reavaliação, monitoriza a melhoria e remissão de comorbilidades (cujo controlo é igualmente importante nesta fase), ajusta ou suspende medicamentos, sempre que necessário e ajuda no controlo do peso. Como a obesidade é um fator de risco major para diabetes tipo 2, a melhoria e remissão da diabetes, após cirurgia bariátrica pode ocorrer até 80% dos casos. É importante salientar que pessoas tratadas com elevadas doses de insulina no pré-operatório exigem reavaliações mais frequentes.
O seguimento pós-operatório permite, ainda, identificar precocemente deficiências de minerais e vitaminas: ferro, vitamina B12, vitamina D, ácido fólico, cálcio, fósforo, magnésio, zinco, etc. A deficiência de proteína é comum entre os macronutrientes. Este risco é superior em cirurgias de mal absorção, sobretudo se houver incumprimento do suplemento multivitamínico recomendado no pós-operatório. Caso estes défices não sejam devidamente tratados, podem resultar em cansaço, anemia (sobretudo em mulheres que ainda menstruam), irritabilidade, queda de cabelo, alterações do sistema nervoso, perda de massa óssea e eventualmente osteoporose, entre outras. As vitaminas e minerais são essenciais em muitos processos biológicos que regulam o peso corporal, razão pela qual a sua deficiência pode interferir no sucesso cirúrgico. O endocrinologista contribui para a compensação destas deficiências nutricionais e o equilíbrio do organismo.
Existem algumas particularidades no seguimento pós-operatório de mulheres em idade fértil. Os contracetivos orais devem ser evitados, sobretudo em cirurgias que alteram a absorção intestinal. A cirurgia bariátrica aumenta a taxa de fertilidade, mas, geralmente, é recomendado adiar a gravidez, até estabilização do peso (pelo menos, 12 a 18 meses após a cirurgia) e assegurando o controlo das comorbilidades e défices vitamínicos para diminuir o risco de complicações maternas e fetais. Além disso, o seguimento durante a gravidez também é importante para o controlo ponderal e da diabetes gestacional, se surgir.
As hipoglicemias pós-prandiais são complicações metabólicas raras, mas potencialmente graves, que ocorrem, sobretudo, após cirurgias de mal absorção. Ao contrário do dumping, que ocorre precocemente no pós-operatório e melhora com o tempo, esta entidade desenvolve-se, geralmente, meses ou anos após a cirurgia e tende a piorar. Estas hipoglicemias caraterizam-se por sintomas mais graves e ocorrem geralmente após uma refeição rica em hidratos de carbono de absorção rápida. O endocrinologista atua diretamente na validação dos critérios de diagnóstico e na orientação clínica, podendo, além de recomendações nutricionais, prescrever fármacos que ajudam no seu controlo.
Embora a cirurgia bariátrica seja um tratamento bastante eficaz e duradouro, com perdas ponderais máximas geralmente entre os 18 e 24 meses pós-operatórios, não há milagres nem soluções fáceis para este problema médico crónico. Alguns doentes não atingem a perda de peso desejada e uma percentagem considerável apresenta reganho ponderal a médio e longo prazo. Estes resultados são mais frequentes em caso de incumprimento dos cuidados alimentares e de exercício físico e de abandono do seguimento multidisciplinar. Para além dos efeitos de restrição ou mal absorção, a cirurgia bariátrica altera várias hormonas responsáveis pela saciedade, apetite e metabolismo. Mesmo mantendo as avaliações regulares e as recomendações da equipa multidisciplinar, o reganho de peso pode ocorrer como consequência da adaptação do organismo às alterações provocadas pela cirurgia. Se o reganho for significativo, pode haver recidiva das comorbilidades associadas à obesidade. O endocrinologista é primordial no diagnóstico dessas condições, no ajuste da terapêutica, na avaliação da adesão e reforço ou intensificação das medidas de estilo de vida. Quando necessário, pode prescrever fármacos aprovados para o tratamento da obesidade, como terapêutica adjuvante no reganho ponderal pós-cirúrgico.
Conclusão
A presença de um endocrinologista na equipa multidisciplinar é indispensável, não só para ajudar a identificar ou excluir patologias que interferem na indicação e riscos da cirurgia bariátrica, mas também para orientar o diagnóstico e tratamento de várias condições clínicas que podem interferir nos resultados a curto, médio e longo prazo. O sucesso da cirurgia bariátrica depende tanto da dedicação e experiência da equipa como da pessoa com obesidade, centro de todo o processo. A equipa aconselha, incentiva, apoia e é um agente facilitador de bons resultados, mas a adesão do doente é fundamental durante todas as fases.