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Os medicamentos de origem vegetal obtidos a partir da casca da planta “cinchona” são utilizados, pelo menos desde o século XVII, para o tratamento de doenças e febres, incluindo a Malária. Estas plantas são um tipo de arbusto natural das regiões tropicais da América do Sul, nomeadamente do Peru e da Bolívia. Existem provas do seu uso para fins medicinais desde o ano de 1638, quando a Condessa de Chinchon, esposa do Governador do Peru foi curada de uma febre após a sua administração. As virtudes da casca da planta foram disseminadas pela Europa pelos Jesuítas o que lhe emprestou o nome adicional de “casca dos Jesuítas”. A cloroquina e a hidroxicloroquina são os produtos derivados destes “ancestrais” vegetais.
No século XX o uso maciço de quinacrina pelas forças militares dos Estados Unidos da América para a profilaxia da malária foi acompanhada de observações sugerindo efeitos benéficos nas doenças reumáticas.
Durante a década de 1950, a hidroxicloroquina (HCQ) derivado da quinacrina, demonstrou um perfil de segurança mais favorável, com menor toxicidade ocular que a própria cloroquina, e passou a ser um medicamento largamente usado nos EUA no tratamento do lupus eritematoso sistémico (LES) e da artrite reumatoide, duas doenças autoimunes muito frequentes. Atualmente é ainda amplamente utilizada em esquemas terapêuticos de combinação (como o de tripla terapia com o metotrexato e a sulfasalazina) comprovados por ensaios clínicos adequados.
Ao longo de décadas de utilização, foi percebida a existência de algumas ações não diretamente relacionadas com as suas propriedades imunosupressora e anti-reumática. Centenas de trabalhos científicos descreveram outros efeitos terapêuticos num amplo espectro de doenças, incluindo a diabetes, dislipidemias, doenças da coagulação, infeções e até em doenças oncológicas.
As primeiras notificações de hipoglicemia sintomática sofrida pelos doentes tratados com HCQ ou cloroquina são conhecidas há décadas. Nalguns casos a magnitude do efeito pode ser suficiente para levar à suspensão da necessidade de administração de insulina ou ser causa de coma hipoglicémico.
Estudos prospetivos documentaram a redução do risco de eventos tromboembólicos em doentes com patologias reumáticas e até no pós-operatório de cirurgias ortopédicas (neste âmbito existem atualmente outros tipos de tratamentos mais eficazes neste efeito).
Há mais de 30 anos que é também conhecida a sua capacidade de redução do colesterol (total e LDL) e dos triglicerídeos.
Um efeito protetor da HCQ no risco de desenvolvimento de cancro em doentes com Lupus Eritematoso Disseminado (LES) foi sugerido por alguns estudos observacionais. Num estudo em, doentes com glioblastoma, a adição de cloroquina à quimioterapia e radioterapia foi associada ao aumento da sobrevida. Um estudo que investigou a combinação de cloroquina e inibidor de tirosina quinase, imatinibe, em pacientes com leucemia mielóide crônica não mostrou qualquer benefício.
A plausibilidade da HCQ poder diminuir o crescimento de células malignas é derivada de estudos realizados in vitro com linhas celulares. A teoria subjacente é que a inibição da autofagia pelos medicamentos antimaláricos sensibilizaria as células malignas aos efeitos antiproliferativos dos agentes quimioterápicos.
Contudo e até há data, não há qualquer utilidade médica confirmada e autorizada pelas entidades reguladoras, do uso da HCQ no tratamento do cancro.
A HCQ foi originalmente usada como tratamento contra o parasita causador da infeção da Malária e, portanto, não é surpreendente que este medicamento tenha demonstrado atividade em outros tipos de infeções. Foi notado que o tratamento com HCQ de pessoas com doenças auto-imunes tinha associado um menor risco de infeções; em claro contraste com outras terapêuticas imunossupressoras para doenças autoimunes, a maioria das quais aumenta a probabilidade de infeção.
Talvez mais surpreendente seja a utilidade da HCQ e de outros antimaláricos no tratamento da infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH). Há mais de uma década, dois ensaios clínicos controlados, demonstraram eficácia da HCQ na infeção pelo VIH; a disponibilidade de medicamentos genéricos de baixo custo e o aumento do apoio governamental ao tratamento acabariam por suspender o seu uso no VIH.
A alcalinização de vesículas intracelulares ácidas (lisossomas) pela HCQ e pela cloroquina foi postulada como responsável por efeitos inibitórios no crescimento de organismos intracelulares, incluindo bactérias e vírus. Pensa-se que diminuições na carga viral na infeção pelo VIH sejam causadas pela interrupção da glicosilação da proteína gp120 do envelope do vírus, resultando em menor infecciosidade das partículas virais que são produzidas.
A possível atividade da HCQ na mononucleose infeciosa foi proposta pela primeira vez em 1960, ainda antes que a sua causa – também um vírus – fosse conhecida. Vários ensaios clínicos insatisfatórios se seguiram, alguns com resultados positivos e outros negativos. Finalmente em 1967, os autores de um pequeno mas bem conduzido ensaio randomizado de cloroquina, duplamente-cego e controlado por placebo, concluíram que “exceto para medidas de suporte, a mononucleose infeciosa era essencialmente intratável” e portanto a possibilidade do uso de HCQ foi definitivamente abandonada.
Já na COVID-19, os defensores da possibilidade do uso da HCQ sugerem que poderia potencialmente atuar na glicosilação da enzima de conversão da angiotensina 2 cujo recetor é usado pelo vírus SARS-CoV-2 para se ligar e entrar (infetar) nas células humanas.
No entanto, indica-nos a história, em estudos in vitro a cloroquina inibiu a replicação do vírus Ebola, mas causou um rápido agravamento da infeção por Ebola em porquinhos-da-índia e não teve qualquer impacto na mortalidade em ratinhos e hamsters. Na infeção pelo vírus chikungunya, a cloroquina foi ativa em estudos de laboratório, mas piorou o curso clínico da infeção em macacos. A cloroquina inibiu o vírus do Dengue em algumas culturas celulares, mas falhou em controlar a doença num estudo randomizado de 37 pacientes. E embora estudos de laboratório sugerissem atividade contra o vírus da gripe (influenza), a cloroquina não impediu a infeção num grande estudo randomizado.
O tratamento de doenças autoimunes com HCQ é comum há mais de meio século; os riscos do tratamento com HCQ neste subgrupo de doentes são considerados baixos. No entanto existe um risco potencial de efeitos adversos, sendo os mais comuns as lesões oculares (na retina), seguidos pela neuromiotoxicidade e cardiotoxicidade (arritmias graves); por este motivo os tratamentos com HCQ exigem monitorização regular e supervisão médica.
Devemos ser muito cautelosos em relação ao tratamento proposto para pessoas infetadas com SARS-CoV-2, o vírus que causa a COVID-19. Muitas propostas são baseadas em investigações in vitro, estudos experimentais em animais, uso em infeções por vírus semelhantes ao SARS-CoV-2 (por exemplo, SARS-CoV-1) ou em outros vírus como o VIH. Atualmente, pelo menos 80 ensaios clínicos com cloroquina, hidroxicloroquina ou ambos (às vezes em combinação com outros medicamentos) estão registrados e em curso em todo o mundo.
Os exemplos de disparidade entre os achados laboratoriais e os resultados clínicos nos doentes são imensos e devem ser suficientemente dissuasores de atos entusiasmados ou desesperados que promovam a sua utilização até que ocorram sólidas recomendações médicas baseadas em estudos bem conseguidos e confirmados.
O eventual uso generalizado de hidroxicloroquina exporia alguns doentes a efeitos laterais que embora raros, são potencialmente fatais, incluindo reações adversas cutâneas graves, insuficiência hepática fulminante e arritmias ventriculares (especialmente quando prescrita com o antibiótico azitromicina). Para além disto, a sobredosagem é perigosa e difícil de tratar.
Mesmo medicamentos inicialmente apoiados por evidências de eficácia podem vir a ser mais prejudiciais do que benéficos. Ao longo das últimas décadas centenas de medicamentos foram retirados devido a reações adversas após a sua introdução no mercado.
O uso de (hidroxi)cloroquina não está comprovadamente recomendado na COVID-19 e o seu uso deve ser sempre indicado por médico especialista e sob apertado controlo e monitorização de potenciais efeitos laterais adversos.
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