Xerostomia
Uma manifestação local também de uma condição geral.
Quem de nós nunca sentiu a boca seca durante um momento de stress? A xerostomia (sensação de boca seca) é tão frequente que na maior parte das vezes desvalorizamos a sua existência. Contudo, a xerostomia pode condicionar uma grande afetação da qualidade de vida quando interfere com a capacidade de mastigar os alimentos, quando altera o paladar, quando perturba a capacidade de deglutir ou quando condiciona desconforto ou dor. A xerostomia é muito prevalente e pode ocorrer em qualquer idade, sendo mais frequente na população idosa, onde se estima que ocorra entre 12 a 47% dos doentes.
Várias condições, por vários mecanismos, podem originar uma alteração quantitativa e/ou qualitativa de saliva, levando à sensação de boca seca. Situações tão díspares como malnutrição, consumo de álcool, efeitos de alguns – muitos – medicamentos, radioterapia da cabeça e do pescoço e/ou problemas emocionais/psicológicos podem estar na base da xerostomia. Estes são os fatores etiológicos mais amplamente conhecidos, mas a xerostomia pode ser apenas a ponta do iceberg de um problema maior, muitas das vezes oculto, e que necessita de uma abordagem mais aprofundada e detalhada.
A xerostomia pode ser causada por fatores locais, geralmente com outras queixas associadas como dor, tumefação, alteração da mucosa oral, entre outras, que levam o doente a consultar um dentista ou um estomatologista. Mas a xerostomia pode ser a manifestação de uma doença com repercussões em todo o organismo. Pela complexidade das várias etiologias, a xerostomia implica sempre uma abordagem clínica metódica, abrangente e minuciosa, muitas das vezes constituindo um verdadeiro desafio para o qual o Internista se perfila como elemento essencial na investigação etiológica e orientação clínica.
A xerostomia, um sintoma aparentemente tão simples, carece sempre de uma abordagem abrangente com uma anamnese minuciosa, a revisão das queixas por aparelhos e sistemas e com a colheita de antecedentes pessoais e familiares e da medicação em curso (e mesmo passada). Deve ser sempre acompanhada de um exame físico detalhado e global (e não apenas da cavidade oral). Sempre que possível deve-se orientar o pedido de meios auxiliares de diagnóstico em função dos diagnósticos mais prováveis, o que por vezes se torna difícil face à escassez de dados semiológicos (história clínica e/ou exame físico).
Causas sistémicas mais frequentes
A diabetes mellitus, quando descompensada ou não tratada, condiciona poliúria que, por sua vez, conduz a desidratação e sensação de boca seca. A xerostomia pode, assim, ser um indicador de hiperglicemia (que com uma pesquisa de glicemia capilar pode ser rapidamente diagnosticada). Pela sua prevalência a nível mundial, a diabetes mellitus é uma das principais causas sistémicas de xerostomia. A doença renal crónica, também muito prevalente, leva à acumulação de substâncias tóxicas resultantes do metabolismo e condiciona desidratação, a qual também se pode manifestar por sensação de boca seca.
Doenças infeciosas, sobretudo víricas, também condicionam frequentemente xerostomia e deverão ser sempre equacionadas numa primeira abordagem. Infeção pelo VIH (Vírus da Imunodeficiência Humana), VHC (Vírus da Hepatite C), VHB (Vírus da Hepatite B), EBV (Vírus de Epstein-Barr) e CMV (Citomegalovírus) deverão ser sempre pesquisadas. A tuberculose, muito prevalente em Portugal, afeta sobretudo os pulmões, mas também pode cursar com atingimento das glândulas salivares por um mecanismo de formação de granulomas ou quistos nas glândulas salivares afetadas, nomeadamente a parótida.
Doenças autoimunes também podem condicionar xerostomia pelo atingimento direto ou indireto das glândulas salivares, especificamente a parótida, com a artrite reumatóide e o lúpus eritematoso sistémico a ser as mais frequentes. Ambas têm mais frequentemente manifestações articulares, mas também podem condicionar manifestações salivares. A esclerodermia, a cirrose biliar primária e doenças autoimunes da tiroide são outras entidades nosológicas que podem cursar com xerostomia. Na prática clínica, a doença autoimune que mais rapidamente o clínico associa à xerostomia é a Síndrome de Sjögren.
Algumas doenças caracterizam-se pela deposição anormal de determinadas substâncias nos órgãos. A hemocromatose carateriza-se por uma sobrecarga de ferro que acaba por se depositar em órgãos vitais. A amiloidose caracteriza-se pela deposição em vários órgãos de uma proteína anormal chamada amilóide e pode estar associada a algumas patologias como infeções crónicas ou ao mieloma múltiplo (doença oncológica). A deposição de substâncias anormais nas glândulas salvares, seja ferro ou amilóide, pode condicionar diminuição da produção da saliva e, consequentemente, manifestar-se por xerostomia.
Conclusão
Um sintoma tão inespecífico quanto a xerostomia pode não ter significado patológico ou ser a manifestação de doenças sistémicas e de diagnóstico complexo. Assim sendo, torna-se necessária uma abordagem global do doente, valorização clínica das queixas, recurso criterioso a exames e análise crítica desses resultados. O Internista é assim, por excelência, o médico de eleição para efetuar esta avaliação, com ulterior orientação terapêutica e articulação com outras especialidades. O tratamento da xerostomia pode ser sintomático, mas o ideal será ser sempre um tratamento dirigido à doença de base.
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